Reproduzimos uma entrevista do Semanário Transmontano, de 4 de Junho passado, sob o título "Transmontanos de gema", dada pelo maestro Ferreira Lobo, que faz algumas considerações à cidade de Chaves que se quer termal. É o olhar de quem ali nasceu e vive fora. Quem gere as cidades deve ter uma atenção particular para quem, de fora, vê a cidade com outra distância, mas sem menor afecto.
“Chaves é a minha terra e eu projecto sobre a minha terra uma série de desejos”
Ferreira Lobo, de 56 anos, vive há muitos anos em Matosinhos
Conserva algum sotaque, não passa sem os salpicões que manda fazer e guarda num pote de azeite, e nunca há-de esquecer o cheiro do avô, com quem dormia, e que ainda tem entranhado. Mas em Chaves também há coisas que lhe desagradam: a degradação do centro histórico, os erros urbanísticos, e ainda a escassa oferta cultural. O flaviense Ferreira Lobo, maestro titular da Orquestra do Norte, já dirigiu espectáculos nas mais conceituadas salas do mundo. No concelho, ainda é um desconhecido. Mas isso não o preocupa. O que o preocupa é o facto de o país não cultivar as tradições culturais.
Semanário Transmontano: Considera-se um transmontano de gema?
Ferreira Lobo: Acho que de uma forma geral, todos os transmontanos e todos os flavienses, em particular, têm uma ligação à terra. Há-de reparar que a geração dos nascidos em 50 quase todos regressaram. Independentemente de vir visitar os meus pais, venho ciclicamente ver um grupo de pessoas com quem partilhei a infância, o liceu e, inclusivamente, a faculdade.
ST: Ainda conserva o sotaque flaviense?
FL: Claro que sim, qualquer flaviense, qualquer autóctone, preserva sempre. Eu tive um professor na faculdade, que apesar de ter saído muito jovem de Bragança, aos 70 anos matinha exactamente o sotaque transmontano cerrado. Eu creio que ele o cultivava.
ST: Sente saudades de Chaves?
FL: Depende do período, mas de tudo. A minha vivência em Chaves foi uma vivência feliz, muito diversificada e que tem a ver com dois territórios: um profundamente rural, do lado do meu pai, e outro urbano, do lado da minha mãe. E esse contacto permitia-me experiências muito diversificadas, enquanto criança.
ST: O que não esquece… imagens, cheiros…
FL: Os cheiros todos. De Chaves e da periferia. O cheiro da batata, das ruas, dos animais e, sobretudo, o cheiro do meu avó, quando dormia com ele. Tenho esse cheiro perfeitamente entranhado.
ST: De que forma mata saudades?
FL: As saudades não se matam. Faço périplos a pé pelo planalto, por Nogueira, onde ainda existem primos. Gosto de me encontrar com pessoas que têm muita idade.
ST: Essas pessoas conhecem-no, têm noção do seu valor artístico?
FL: Não conhecem o meu percurso, nem têm que reconhecer. O valor é sempre relativo e não estou a falar com falsa modéstia, acredito que é assim. Infelizmente, acredito que aquilo que eu faço diz muito da nossa sociedade, não só de Chaves. O núcleo que tem acesso a bens culturais desta natureza continua a ser ainda um núcleo muito restrito. Aquilo que fizemos de bom como trabalho foi ter levado a música erudita a centenas de milhares de pessoas.
ST: Através dos protocolos com as Câmaras…
FL: O relacionamento com as autarquias, acho que foi um trabalho determinante, mas por si só não chega. Mas creio que é um problema que atravessa toda a sociedade portuguesa, na medida em que somos um país que não cultiva estas tradições, mas devia cultivá-las.
ST: Isso entristece-o?
FL: Não fico propriamente triste, é preciso racionalizar a questão. Os países mais desenvolvidos da Europa não são desenvolvidos por acaso. Estas tradições ajudam a que as pessoas tenham pensamentos mais estruturados, que sejam pessoas mais informadas, mais críticas e, como consequência disso, mais organizadas, e isso, naturalmente, reflecte-se na pujança da sua economia. Porque, repare, há países mais pequenos que Portugal, como a Holanda ou a Bélgica, onde a qualidade de vida não tem comparação possível. Falo da Holanda porque estudei lá algum tempo, mas poderia falar dos países bálticos, que são países incomensuravelmente mais à frente em termos culturais e consequentemente mais à frente em termos económicos. Hoje fala-se muito em economia, ora a economia depende da nossa capacidade de resposta aos problemas que se nos colocam no dia-a-dia. E o que é que isso tem a ver com música? A música é um elemento que no período da aprendizagem, da formação, nos pode ajudar a ter um pensamento mais estruturado, com melhores respostas, mais crítico, mais aberto. Aquilo que nos é oferecido em termos de consumo corrente é exactamente o contrário, faz o amortecimento intelectual, psicológico, espiritual. Normalmente, quando se vai à discoteca o que é que se ouve? Ouve-se sons isócronos, sempre batidas da mesma maneira, impedem-nos, por exemplo, de estar a conversar, de interpretar a realidade, limitam as nossas capacidades intelectuais na sua plenitude.
ST: Mas apesar do atraso do país relativamente ao resto da Europa, parece-lhe que Chaves deu um salto desde que saiu daqui?
FL: Acho que tinha que dar. Mas no ponto onde estamos e no edifício onde estamos, veja bem, do ponto de vista arquitectónico, pergunto-me, olhando para este contexto, se evoluímos.
ST: Como vê a cidade?
FL: Vejo uma cidade que evoluiu demograficamente, mas que não evoluiu qualitativamente, no sentido da oferta aos seus cidadãos, no sentido da organização urbanística, por exemplo. Evidentemente que a informação chega, e naturalmente faz com que as pessoas estejam mais despertas, mais curiosas relativamente a um conjunto de processos e que isso, naturalmente, tem que se traduzir em evolução. Mas eu gostaria de ver o contexto histórico da cidade mais preservado, gostaria de ver aqui orquestras sinfónicas mais vezes, não necessariamente a Orquestra do Norte; a actividade cultural mais articulada com o nosso contexto económico, que julgo estará dependente dos serviços, nomeadamente os de excelência de que a cidade dispõe, como é o caso do termalismo. Acho que a articulação de termalismo com cultura faz todo o sentido, mas, para isso, é preciso boas infra-estruturas.
ST: O auditório do Centro Cultural oferece essas condições?
FL: O auditório é um auditório perspectivado para uma escola. Eventualmente, também poderá servir outros propósitos, mas essencialmente serve uma escola, por isso, é sempre uma estrutura com algumas limitações, isto do ponto de vista profissional. Vem a propósito disto dizer que faria sentido devolver à cidade um espaço que tem história, que é o Cine-Teatro, onde muita gente da minha geração e de outras passou lá domingos fantásticos, a ver uns filmes fantásticos.
ST: Quando decidiu que queria ser maestro?
FL: Há uma determinada altura em que a necessidade de um projecto desta natureza se torna evidente, uma motivação de vida, e é aí que decido seguir um projecto aliado a uma determinada capacidade pessoal ligada a esta forma de expressão artística.
ST: Foi influenciado por alguém, no seio da família?
FL: Não, na família, pais, tios e irmãos sempre cantaram, mas para consumo caseiro. São as chamadas canas rachadas, aliás, eu também sou.
ST: Em criança já gostava de bandas filarmónicas?
FL: Ouvia com agrado. O meu passado em Chaves está ligado a bandas e aos conjuntos. Fiz parte do Aquaflaviae.
ST: Tocavam nas festas?
FL: Andávamos em tudo. Mas fazíamos sobretudo os bailes do Liceu. Começávamos com o baile de Santos, a seguir era o baile de gala, depois o Liceu rivalizava com a Escola…
ST: Há algum espectáculo que o tenha marcado especialmente?
FL: Tive alguns. Desde logo em Portugal, alguns ligados a este projecto. Mas devo confessar que sou muito feliz porque tenho muitos. Tive o privilégio de dirigir grandes obras, com muito público e com grande sucesso artístico. Naturalmente, que há momentos interessantes. Não se dirige todos os dias em Praga…dirigir requiem de Mozart em Paris também… são momento únicos.
ST: Tem fama de ser demasiado perfeccionista, teve, aliás, alguns atritos com a Câmara Municipal de Chaves, relacionadas com a falta de condições para a realização dos concertos. Está ultrapassado?
FL: Vejamos, quando sou amigo, ou quando tenho uma relação afectiva, com uma pessoa, tenho tendência a exigir mais dela. Isto pode parecer um contra-senso, mas não é. Chaves é a minha terra e eu projecto sobre a minha terra uma série de desejos. Agora eu acho que, na medida proporcional em que eu projecto desejos, também acontece que eu tenho, ao longo do tempo, me disponibilizado, e sem me pôr em bicos de pés, não faz parte do meu carácter. No entanto, acho que essa disponibilidade, por um lado, não é aproveitada, e, por outro lado, tudo aquilo que eu vou mostrando que deve ser alterado, para benefício do público e até para prestígio das instituições, cai sistematicamente em saco roto. Isso depois cria uma tensão que num determinado momento acaba por explodir.
ST: Mas está ultrapassado ou não?
FL: Eu acho que as coisas se podem fazer melhor. Eu não entro nisto para fazer uma gestão da minha imagem pública. Eu sou um técnico e como técnico sou exigente comigo próprio e com os sistemas que de mim estão dependentes. É a minha postura e por vezes isso faz com que reaja de forma tecnicamente inadequada, devo dizê-lo, ou menos assertiva, porque é a quente, mas penso que sempre que reagi tinha razão.
ST: Mudando de assunto, no prato, é transmontano?
FL: Estão a perguntar se sou bom garfo? Sim, é verdade.
Tenho uma senhora que me faz salpicões todos os anos e que eu guardo num pote de azeite. Lembro-me assim de alguns cozinhados da minha mãe e que eu tento imitar de forma grosseira de vez em quando. Sim, sou um apreciador dos sabores transmontanos.
ST: Como definiria um transmontano de gema?
FL: Transmontano de gema… bem, eu não sei se há transmontanos de gema. Não é propriamente uma definição. É aquele que gosta da sua terra porque tem um conjunto de afinidades, mais ou menos primárias, mais ou menos sensitivas, e que tem que ver com os seus laços. É, sobretudo, aquele que não nega que nasceu nas berças.
Por: Margarida Luzio
O valor universal da água, no que diz respeito à sobrevivência da Humanidade e à importância que tem por exemplo para as questões energéticas e da regeneração do corpo, obriga a que cada um de nós deva tomar esse recurso como finito e o preserve em todas as formas de utilização. As cidades que o têm como recurso económico e identitário devem saber potenciá-lo como desenvolvimento, contribuindo assim para o desígnio universal. Este é um espaço de estas e de outras águas. De todas as águas.
2010-06-27
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