O valor universal da água, no que diz respeito à sobrevivência da Humanidade e à importância que tem por exemplo para as questões energéticas e da regeneração do corpo, obriga a que cada um de nós deva tomar esse recurso como finito e o preserve em todas as formas de utilização. As cidades que o têm como recurso económico e identitário devem saber potenciá-lo como desenvolvimento, contribuindo assim para o desígnio universal. Este é um espaço de estas e de outras águas. De todas as águas.

2010-11-19

Uma cidade não nasce nem cresce numa folha em branco

Imagem: pormenor de parede exterior dos Pavilhões do Parque, nas Caldas da Rainha

Cidade que das águas nasceu e cujo território modelou o seu assentamento, será que Caldas da Rainha é hoje uma cidade em busca do seu posicionamento estratégico? Será que algumas decisões futuras e próximas contribuirão para esse desígnio?
Em 2010, afinal o que quer ser esta cidade? Nela, qual o papel dos vários temas sujeitos a este ciclo de debates? Será que pode ser uma cidade hospitalar ou de saúde, uma cidade com termas ou termal, uma cidade de cultura e turística? Qual o papel da revisão do PDM na assunção de um conceito identitário único ou misto para a cidade?
Há alguns anos, dizia-se que a globalização iria destruir as diferenças locais, homogeneizando o espaço e a sociedade. Hoje, o debate não se coloca mais nestes termos. Tanto as peculiaridades locais como a própria globalização económica passou a valorizar as diferenças dos lugares, fazendo desta diferenciação um atractivo para o capital económico das cidades.
Ao analisarmos uma cidade, é preciso vê-la na sua dupla dimensão, de cidade que se projecta e antecipa – ou seja, a cidade que se sonha – e de cidade que se concretiza – ou seja, a cidade construída e vivenciada, que nem sempre é a que foi sonhada ou projectada.
A cidade, entre projectos e políticas, ora se parece transformar de uma forma vertiginosa, ora parece permanecer quase imutável na sua morfologia e na sua identidade. São os tempos da cidade. Mas também é verdade que, tal como um relógio avariado está certo duas vezes por dia, a cidade tem sempre um espaço cujo quotidiano é distintivo, ou seja, o seu tempo certo.
Aliás, o tempo das cidades é algo a que também podemos associar ciclos de vida.
E se as identidades de uma cidade fazem parte do seu tempo certo, mesmo a perda momentânea da sua função mais distintiva lhe não deve perder a identidade. Por exemplo, a cidade inglesa de Bath sobreviveu exportando a sua imagem de cidade termal, entre 1976, quando as suas termas fecharam por inquinação das águas, até à abertura do novo balneário termal, em 2006. E isto foi possível, porque manteve a sua imagética urbana e turística associada a essa identidade, mesmo sem ter nesse largo período um balneário em funcionamento. O tempo aqui, associado a esta imagética, parece que não parou.
Mas afinal quais são as ideias necessárias para as Caldas e os vectores que, hoje em dia, vão tecendo dinamicamente as relações entre a cidade existente e a cidade desejada? Creio que são exactamente as decisões futuras que condicionarão o percurso desta cidade: será que é uma cidade fechada em si mesma, ou uma cidade que dialoga, a uma outra escala, com a região envolvente, dando as mãos a outros municípios na partilha de equipamentos, sejam eles de saúde ou industriais, por exemplo?
Caldas já não é a mesma cidade de há 50 ou 100 anos, nem por exemplo há imprensa satírica como há quase 100 anos para contar com humor toda esta indecisão que dá mote ao debate que se segue: um hospital novo ou ampliado? Ou mesmo à indecisão sobre o futuro do termalismo local.
Efectivamente, há quase 100 anos, quando tinhamos um hospital civil na periferia da então vila, também tinhamos um jornal satírico, pelos vistos desconhecido de muitos e que, provavelmente, aqui revelo como mais um jornal caldense, O Viroscas, saído a 11 de Outubro de 1914. No seu primeiro número intitulou-se um “semanário imparcial com pretensões a humorístico”. É, provavelmente, o único jornal caldense integralmente de tom satírico. E, seguramente, bem falta hoje nos faz!
Voltando ao tema central do debate que se segue, nos anos 50 em termos internacionais um hospital planeava-se quase sempre renunciando-se aos terrenos urbanos. Fiz essa pesquisa recentemente num universo considerável de hospitais portugueses e estrangeiros.
Um hospital era descrito como um organismo mutável, não só devido ao progresso das ciências médicas, como também às novas necessidades sociais, às quais devia ajustar o seu mecanismo. Em termos internacionais, a construção de um hospital moderno, segundo o médico Albert Marechal e o arquitecto J. Minguet, já apresentava um grande número de problemas, tanto no plano urbanístico, como no plano funcional, defendendo esses especialistas que cada vez mais se tomaria em conta que se não podia nem devia dissociar as três missões de um hospital de dimensões consideráveis, como a terapêutica, a investigação e o ensino.
Nessa época, nas Caldas, o Hospital de Santo Isidoro apresentava-se, segundo o plano urbanístico de Paulino Montez, antiquado e a necessitar de ser substituído por um novo edifício. E Paulino Montez é bem objectivo: “a localizar, como o existente, em terreno fora do aglomerado, junto da via envolvente”. Contudo, a construção do novo hospital, na década de 1960, no centro urbano e num local de diminutas acessibilidades, como ainda hoje se torna evidente, veio a revelar-se polémico, que nem mesmo o Plano de Montez impediu.
Polémico designadamente entre a população caldense. Em 1958, dois artigos publicados no Diário Popular, de 17 e 19 de Novembro, documentam o ambiente de insatisfação quanto à aplicação financeira do legado da Condessa de Bertiandos, na construção do novo Hospital Sub-Regional. Lembre-se que esse legado deveria “ser aplicado inteiramente no melhoramento e reapetrechamento, tão necessários, das instalações do estabelecimento termal” (Diário Popular, de 17 de Novembro de 1958, p. 11). A população discordava da pretensão em construir o Hospital na Mata, já que a própria Misericórdia possuía terrenos em redor do Hospital de Santo Isidoro, “na periferia da cidade, como convém” (Diário Popular, de 19 de Novembro de 1958, p. 8).
O Hospital Sub-Regional das Caldas da Rainha nasceu assim envolto numa polémica local. O seu projecto a merecer parecer do Conselho Superior de Obras Públicas data de 1953. Este hospital foi pensado para atender às necessidades de assistência hospitalar da sub-região, como também para prestar apoio ao hospital termal, entidade esta que foi a que promoveu a construção em terrenos seus. Nos termos da Lei 2011, de Abril de 1946, que definia na altura a organização hospitalar do país, a construção de hospitais sub-regionais dever-se-ia fazer em regime de comparticipação entre a entidade que promovia a sua construção e o Fundo de Desemprego e, por isso, haveria sempre que atender, na elaboração dos respectivos projectos, aos recursos de que essas entidades pudessem dispor. Neste sentido, a lotação deste hospital, tendo em atenção a população à época do concelho, deveria ser de 76 camas, mas com a possibilidade de passar a 100 em 1971, o que conduziria a uma construção em duas fases. Porém, atendendo a que este hospital deveria ser um complemento do hospital termal foi resolvido que a construção se efectuasse numa só fase, pelo que a previsão em projecto passou para 95 camas. As ampliações far-se-iam anos mais tarde, como sabemos.
Foi esse princípio de articulação estreita com o hospital termal, tendo em vista captar o legado que fora apenas previsto para este, que motivou a opção em construir o novo hospital no centro da cidade. Essa articulação do novo hospital com o hospital termal, apesar de um recuo relativamente à iniciativa de final do século XIX, suportou-se também na ideia de se criar nas Caldas um Centro Nacional de Reumatologia, mas tal nunca viria a acontecer.
Aliás, o médico local Mário de Castro, em artigo datado de Janeiro de 1963, referia que: “o Hospital Termal Rainha D. Leonor, unidade assistencial de clínica hidrológica, está desactualizado, muito abaixo das suas tradições, possibilidades assistenciais e do papel que lhe deve ser atribuído na hidrologia nacional”. Lembro que, em 1962, se dera a passagem deste hospital termal a unidade em funcionamento permanente, durante todo o ano, e designado Hospital Central da Zona Sul, na sua qualidade termal.
Portanto, estas realidades, quanto à necessidade da sua modernização e ao mesmo tempo com responsabilidades acrescidas, induziam uma desejável articulação do hospital termal com o investimento que na época era feito ali ao lado, com a construção do novo hospital sub-regional, o que porém não aconteceu.
Hoje, como contributo para o debate, creio que o futuro deste edifício podia passar por uma ponderação que incluisse vários factores, mas acho que tem sentido recuperar a sua origem programática e enquadrá-la numa forte ligação às termas, independentemente de ser ampliado ou não. É esta ideia que quero deixar e confio no saber e na experiência do vasto corpo clínico desta unidade para consubstanciá-la e verificar a sua pertinência no quadro da decisão que se procura. Acho que podemos aproveitar esta singularidade como elemento programático, porque a relação com o termal é um factor inteligente de optimização das preexistências e dos investimentos públicos que em 50 anos ali foram realizados.
A nova entidade física seria repensada como hospital que integraria uma componente reumatológica no seio das existentes, que ainda hoje seria único, tal como inicialmente defendia o Dr. Costa e Silva. E até se cumpriria, finalmente, o legado da Condessa de Bertiandos.
Admito que na análise a este tema não estão todos os dados lançados, entre novo e ampliação. Mas creio que a hipótese que lanço se deveria pôr na mesa, em qualquer cenário, identificando em ambas as soluções: os pontos fortes e fracos, ameaças e oportunidades, e só depois decidir-se entre uma ou outra, ou mesmo por uma solução mista.
Neste momento, como sabemos, só uma solução se encontra prevista pelo Ministério da Saúde, recentemente.
Creio que cabe aos actores locais defenderem a melhor solução junto de quem de direito.
É que uma ideia para este edifício e para este vasto património passa por um sinal que todos devemos dar relativamente ao balanço a fazer entre partes dificilmente conciliáveis se os actores apenas olharem para um dos lados do problema.
Potenciar este centro urbano como parque de saúde, integrando aspectos patrimoniais, de cultura e Natureza, é apostar numa sociedade criativa, desde logo nos conceitos que se tem para o futuro de uma cidade. É preciso que a economia criadora seja valorizada através, por exemplo, da acção junto do património e do reforço das identidades locais, que tem consequências efectivas no desenvolvimento.
Nesta nova condição urbana revelam-se identidades plurais e práticas inteiramente novas de apropriação material e simbólica do espaço e do tempo. A diversidade cultural, a multiplicidade de usos urbanos e a difusão de tecnologias de comunicação rasgam as fronteiras do quotidiano dos lugares. Para além do Estado e do Mercado, há novas dimensões de pensar a construção de referências para a vida em sociedade. É nesse sentido que a retomada do papel da sociedade civil como instância política é necessária e inadiável.
A cidade, dizia Shakespeare, são as pessoas nos seus conflitos, medos, alegrias e paixões. E as pessoas para serem plenas na cidade precisam simultaneamente das palavras e das acções. A cidade significa, por excelência, o reino da comunicação, da acção e de toda a complexidade social marcada por diferentes protagonistas. É o território como condição da democracia. Uma estrada para a cidadania. Pelo que o território tem de ser qualificado.
No território, é possível reconhecer o sentido dos interesses colectivos, promover pertenças e mobilizar forças plurais de mudança. É no território que nos fazemos sujeitos da política e portadores de projectos de sociedade. O território significa, portanto, uma marca e uma matriz daquilo que verdadeiramente somos e do que queremos para as novas gerações de cidadãos. Sendo assim, há uma dimensão fundamental entre a prática cidadã e o uso do território como condição da democracia.
Como a cidadania depende da qualidade do espaço público para sua efectivação plena, o território depende da política para seu uso pleno em termos de sociabilidades inovadoras.
Mas atenção que há que escutar os sons da cidade, os seus risos e dores. E sabemos como muito desses sons emitidos são ignorados por alguns actores da cidade. Escutar é entender. Entender para transformar.
Tal como entender o território em presença, entender o papel da comunidade local é promover o debate, com base numa rede, onde o interesse maior seja o interesse comum. Para o pensador francês Michel Foucault, o poder exerce-se em rede. O poder é relação; logo, onde há poder dos cidadãos, há resistência. A identificação dos problemas e o encontro de soluções não são propriedade do Estado central e autárquico, pelo que a sociedade e a sua participação cidadã são vectores cada vez mais fundamentais. O papel de um Conselho da Cidade pode ser visto numa lógica estratégica de gestão de fronteiras, de elos de ligação, de gestão de conflitos, de relações e de interfaces.
Estas Caldas da Rainha podiam ter há muitas décadas apostado em eixos estratégicos tão evidentes com base nas suas características e heranças naturais e culturais. E esses eixos são quatro:

a) O eixo das águas, das termas ao mar;
b) O eixo patrimonial, das Caldas a Óbidos;
c) O eixo comercial, das termas ao caminho-de-ferro;
d) O eixo ecológico, coincidente com a zona intermédia do Perímetro de Protecção Termal, onde se deveriam ter preservado reservas estratégicas de terrenos.

A cidade não nasce nem cresce do nada. Há preexistências geológicas, paisagísticas e construídas a que importa atender, na sua preservação e potenciação para o desenvolvimento. Mas também é certo que as cidades são imperfeitas, tal como todos nós. Cabe-nos, na nossa imperfeição, podermos acrescentar ao papel da cidade o melhor de cada um. O papel desta cidade é um papel já amarelecido pela história de muitas gerações. E é essa patine que dá alma à cidade, porque o seu legado é o maior ensinamento para nela actuarmos. O legado de uma cidade nunca é, portanto, uma folha em branco! Há identidades que se herdam, há novas estratégias que se ambicionam.
A cidade é palco de tensões, de desafios, de planeamento, de acção política e de cidadania. A cidade é o resultado da acção de todos nós e ela sempre nos chama, uma vez mais, porque como escreveu Kaváfis, escritor grego que se dedicou ao estudo do quotidiano das sociedades, “A cidade, por onde fores, irá”.

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